A luz no final do túnel brilhou.
Foram 43 páginas que chegaram, em pleno calor do verão Europeu, para, finalmente, acalentar milhões de descendentes de cidadãos italianos. Esta decisão veio esclarecer e uniformizar um panorama jurídico que há mais de um ano deixava muitos requerentes com uma sensação de incerteza quanto ao reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis, garantido por direito fundamental desde o nascimento.
Era a tese da Grande Naturalização a desnortear as decisões em segunda instância das Cortes italianas. Em nossos textos publicados anteriormente, o ALM Advogadas Associadas esclarecia exatamente o imbróglio jurídico que ocorria nos Tribunais italianos. Diferentes turmas da mesma Corte D’Appello di Roma e da Corte D’Apello di L’Aquila divergiam a respeito do tema e emanaram acórdãos com fundamentações jurídicas pouco plausíveis e sustentáveis, indeferindo, assim, o reconhecimento da cidadania a vários descendentes de cidadãos italianos com linhas de descendência comprovadas documentalmente.
Era um capítulo conturbado de uma história onde, em cada página, eram apresentadas “novidades” interpretativas que endereçavam a decisão para rumos desconhecidos e aparentemente absurdos, juridicamente falando. Mas, foi por nós amplamente sublinhado que o Tribunal de Roma, em primeira instância, sempre refutou em suas sentenças (“ordinanze”) o acolhimento de tal tese.
Antes de adentrar aos princípios delimitados pelo recente julgado em grau superior de jurisdição, faz–se necessário esclarecer que a matéria (reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis), por ser considerada de particular importância e de repercussão geral, ao ser impetrada em via recursal junto à “Corte di Cassazione”, foi direcionada para apreciação junto à “Sezioni Unite” de referida Corte.
O que significa “Sezioni Unite”? Trata-se de uma formação especial do colégio de Ministros, que julgam questões de relevância nacional e internacional. É composta por 9 votantes, investidos de função decisória cujo principal objetivo é promover a padronização do entendimento jurisprudencial, garantindo a exata observação e uniformização na interpretação da lei, com o intuito principal de preservar o direito objetivo nacional.
O caso específico da família Antoniazzi, primeiro caso que chegou para julgamento perante a Corte di Cassazione, teve o seguinte percurso: 1. Ajuizada ação de reconhecimento de cidadania italiana junto ao Tribunal de Roma, teve seu reconhecimento deferido pelo juiz de primeira instância; 2. Em seguida, foi apresentada apelação em segunda instância junto à Corte D’Appello pelo “Ministero dell’Interno” juntamente com o “Ministero degli affari esteri”; em apelação, foi ratificada a aplicação da tese da Grande Naturalização ao caso, a qual foi acolhida e acabou por indeferir o pedido de reconhecimento iure sanguinis da cidadania italiana dos descendentes de Antoniazzi; 3. Contra o referido acórdão, foi apresentado recurso junto à Corte di Cassazione por parte dos descendentes, e, sendo, como já mencionado, uma causa de particular importância, foi remetida para apreciação das “Sezioni Unite”.
Em 12/07/2022, em sessão pública, foi realizado o julgamento presencial e, anteontem, 24/08/2022, foi publicada a tão esperada decisão.
Com esse julgamento colegiado, o acórdão da Corte D’Appello di Roma foi felizmente impugnado e a causa remetida para nova apreciação de uniformização junto àquela Corte, sendo determinada uma nova formação colegial, bem como, que, para novo julgamento, a Corte deverá se ater a determinados princípios de direito. Foram delineados 4; analisamos um a um a seguir.
I. Comprovação da descendência italiana: documental
As “Sezioni Unite” esclarecem que dentro de uma tradição jurídica italiana, desde o sistema delineado pelo Código Civil de 1865, seguido pela Lei específica sobre Cidadania (Lei nº 555 de 1912) e pela atual Lei nº 91 de 1992, a cidadania por nascimento se adquire por título originário iure sanguinis, e o status de cidadão, uma vez que adquirido, possui natureza permanente, é imprescritível e passível de invocação perante os tribunais a qualquer tempo, diante da apresentação e comprovação dos elementos constitutivos da transmissão da descendência, juntamente com a comprovação do nascimento do antenado italiano. Quem requerer o reconhecimento da cidadania italiana tem que comprovar somente a transmissão de sua descendência, ao passo que cabe à outra parte recorrida, que tenha suscitado dúvida, a eventual prova de um fato de interrupção da transmissão da descendência.
Portanto, caso o Ministero dell’Interno tenha dúvida, ou levante suspeita que a transmissão tenha sido interrompida, ele tem que provar tal feito, e não os descendentes têm que provar o contrário.
II. Perda da cidadania italiana: ato espontâneo e voluntário
Quanto à perda da cidadania, como era estabelecida no Código de 1865, as “Sezioni Unite” esclarecem que a menção ali estabelecida se dá quando alguém “obtinha a cidadania em um país exterior”. Para efeito, na linha de transmissão iure sanguinis aos descendentes, deve ser considerada uma ação completa em si mesma, quando se tiver a certeza de que tenha sido realizada por parte da pessoa emigrada à época, com um ato espontâneo e voluntário, com a finalidade de obtenção da cidadania estrangeira. Ademais, para ser considerada em toda a sua eficácia, deve ser acompanhada de um pedido de inscrição nas listas eleitorais. O simples fato de ter estabelecido a residência no exterior, ou de ter estabelecido uma vida social no país de emigração, não implica em condição de completude do ato de obtenção da cidadania em si.
Portanto, nenhum ascendente italiano da época perdeu a cidadania por ato de naturalização de massa, sem ter realizado um ato espontâneo e voluntário, seguido de um comportamento que demonstre tal vontade, como por exemplo, inscrição junto às listas eleitorais, assumindo os direitos civis e políticos de uma nova condição.
III. Direito à Cidadania: um direito subjetivo permanente e imprescritível
O direito à cidadania pertence ao rol dos direitos fundamentais, e não é considerado aplicável a tais direitos a extensão automática de qualquer presunção. Assim, Le Sezioni esclarecem que, de acordo com a aplicação combinada de várias normas e tratados internacionais, cada pessoa possui um direito subjetivo permanente e imprescritível quanto ao status de cidadão, e que tal direito pode ser perdido exclusivamente por renúncia, sempre que seja voluntária e expressa, em obséquio à liberdade individual de cada um; portanto, nunca por renúncia tácita, qualquer modalidade que seja exercida tal renúncia, nem tampouco por uma aceitação tácita de cidadania estrangeira imposta por uma disposição geral/de massa de naturalização.
Portanto, o decreto brasileiro 58–A, de 15/11/1889, que decretava a naturalização de todo estrangeiro presente em território brasileiro, não pode ser considerado instrumento de perda de cidadania originária, sem que o atingido pela norma não declare que, assumindo a nova condição, queria a perda da condição anterior.
IV. Aceitação de emprego público e seus efeitos no direito à cidadania.
Em uma das várias decisões da Corte D’Appello de Roma que acataram a tese da Grande Naturalização, foi alegado que o ascendente italiano nato que “sem a permissão do governo” tivesse “aceitado um emprego por parte de um governo exterior” ou “tivesse feito o serviço militar de potência exterior”, teria perdido a cidadania de origem, qual seja, a cidadania italiana; afirmando que por “governo” deveria ser entendido tanto a administração pública, bem como o órgão de governo que regulamenta e consente ao cidadão estrangeiro o direito de viver e trabalhar no País para onde emigrou.
As “sezioni” mais uma vez refutaram esse entendimento, esclarecendo que na expressão “emprego por parte do governo”, o termo “governo” deve ser entendido em uma interpretação restritiva, sendo considerado somente os empregos governamentais, que tenham como consequência a assunção de funções públicas no exterior, que imponham obrigações de hierarquia e fidelidade ao Estado estrangeiro (no caso, o Brasil), de natureza estável e tendencialmente definitiva. Não pode, desta forma, ser considerada e nem interpretada a aceitação de um emprego, o simples fato ou simples circunstância de ter exercido uma atividade de trabalho qualquer, público ou particular, ou o simples fato de ter se estabelecido no país e ter criado uma família, incluindo-se na vida social e econômica da cidade.
Após adelimitação de tais pontos cruciais para a aplicação interpretativa da Lei da cidadania, o recente julgamento em grau superior realizado pela “Sezioniunite” da Corte diCassazioneitaliana reenviou o recurso para nova apreciação perante a Corte D’AppelodiRoma, cassando o primeiro acórdão recorrido.
Acredita-se que tal decisão venha frear as demasiadas apelações que vinham sendo inconsequentemente ajuizadas com base nesta tese, e que venha também a delinear a correta interpretação dos casos que estão sendo ajuizados junto aos novos tribunais italianos competentes,desde julho. Sabe-se que, para muitos tribunais, a constatação e reconhecimento da cidadania italiana é um tema de novo contato e apreciação, e ter um documento que delineia interpretações, facilita a atuação dos profissionais do setor, bem como promove uma segurança jurídica maior. E que todos em campo possam gritar pela merecida vitória!
Com sedes no Brasil, Itália e Portugal, o ALM Advogadas nasceu para ser um elo entre história e futuro: um escritório especializado em cidadania judicial italiana e portuguesa, que ajuda brasileiros e brasileiras a reconstruir suas raízes e transformar as possibilidades de futuro a partir do reconhecimento da cidadania europeia.